Procurei depois as minhas palavras, que andam há dias num nó na garganta.
Demorei mais de 3 anos a dar a primeira palmada ao Pedro. Eu, que podia jurar que nunca o faria. Eu, que me gabava do meu autocontrolo. Eu, que me lembro com exactidão de uma palmada concreta da minha mãe e que a julguei injusta, tão injusta. Eu, que sempre admirei o meu pai por nunca o ter feito, por nunca ter falhado nesse concreto domínio, que é o de educar sem gritar, sem palmadas. Falhou noutros. Como todos nós falhamos.
Das palmadas da minha mãe, lembro-me especialmente daquela, da injusta e de a certeza (falsa) de que tal injustiça nunca andaria na palma das minhas mãos. Das outras palmadas da minha mãe, lembro-me do seu imediato sentimento de culpa, da forma mascarada de me pedir desculpa, da ânsia de fazermos logo as pazes, fazendo-me admitir o meu erro. Já mais crescidinha, com 7 ou 8 anos, já esperava, com um sorriso disfarçado, que a minha mãe viesse ao meu encontro, para a conversa pós-palmada.
Curiosamente, depois da primeira palmada que dei ao Pedro, não senti propriamente culpa ou injustiça. Senti frustração por não ter seguido aquela certeza que tinha delineado quando vivi a injustiça da palmada da minha mãe. Senti que depois da primeira palmada, seriam mais fáceis as seguintes e a verdade é que a primeira palmada teve réplicas. De todas as vezes não senti propriamente culpa, mas novamente frustração. De todas as vezes, não corri, como corria a minha mãe, para falar do assunto com o Pedro. De todas as vezes, senti que a palmada não surtiu qualquer efeito. Prometi, em todas as vezes, voltar ao registo de conversar com calma, de arranjar uma consequência para o seu comportamento. De todas as vezes, senti que para o Pedro aquele meu erro pouco representava. Ainda assim, para lá da frustração, tinha receio que associasse as minhas falhas ao nascimento da irmã, porque as palmadas estiveram quase sempre relacionadas com um comportamento do Pedro dirigido à irmã.
As minhas falhas sabem-me, por isso, a frustração e a medo, não tanto a culpa.
Porém, num destes dias, cometi a maior falha de sempre. Dessa falha talvez o Pedro se venha a lembrar, já adulto. A propósito dessa falha também o Pedro possa vir a dizer "e eu nunca o esqueci".
Na sequência de um "salto mortal" sobre a irmã, levei o Pedro para o quarto e gritei, ralhei e chorei. Chorei à sua frente em clara perturbação pela consequência que aquele "malabarismo" poderia ter tido.
Ao contrário do que aconteceu nos episódios das palmadas, no dia seguinte, a caminho da escola, o Pedro falou no assunto. Perguntou-me porque é que tinha chorado quando fez "aquilo" à mana. Desta vez a minha falha, a de chorar à sua frente, ficou gravada.
Expliquei-lhe que, tal como já lhe tinha dito, os adultos também choram. Que choram por muitas razões, por tristeza, por preocupação, por exaustão, por medo, às vezes, até por felicidade. Que naquele exacto momento tinha chorado por medo, medo que a mana tivesse ficado magoada.
E, aproveitando o refrão da música que o Pedro tanto gosta de ouvir do Miguel Araújo, Romaria das Festas de Santa Eufémia, disse-lhe:
"É como na canção Pedro, ouve com atenção:
«Por mais duro o serviço
Que a terra peça da gente
Eu não sei por que feitiço
Temos sempre novo alento»
É a mesma coisa, meu amor, por mais difícil que tudo nos pareça, por mais coisas difíceis que o mundo nos traga, como uma preocupação grande que fez a mamã chorar, não sei bem por que magia, mas sei que tem a ver com o amor que eu tenho por ti, tudo se resolve, e estamos bem agora, nada aconteceu de grave e estamos todos felizes."
Foi a forma mais bonita que arranjei para lhe pedir desculpa, para lhe mostrar que erro, e que, mesmo assim, tenho toda a vontade do mundo para continuar a ser melhor.
Não tornou a falar do assunto.
Mas acho que este será o primeiro momento que o Pedro vai julgar como a minha falha. Este foi o meu primeiro grande nó na garganta, enquanto mãe.
Somos amigas, muitas amigas, apesar de em muitos momentos termos atitudes diferentes e até opostas. Lendo o teu texto, percebo facilmente a tua preocupação, ânsia, nó da garganta. Mas, aos meus olhos, em altura alguma falhaste. Nao falhaste nas palmadas, pois certamente quando as destes, conhecendo-te como conheço, ja nenhuma outra alternativa haveria, e no meu entender de mãe, uma palmada certeira (sem necessariamente magoar, claro) faz milagres. E muito menos falhaste por chorar. Choraste porque te assustaste. Choraste porque tiveste medo que algo grave resultasse do comportamento do Pedro. E provavelmente essa tua reaçao, tão franca e directa e instantânea, deu a perceber ao Pedro que tinha feito mal. E o que tinha feito era grave e nao se podia repetir, porque a mama "chorava". O Pedro poderá um dia lembrar-se do caso, mas não o verá certamente como "tua falha"! Beijos
ResponderEliminarSer mãe é falhar. Mas este percurso é bem maior que isso, ensina-nos a aceitar os filhos que temos e a Mãe que somos. Nunca as tuas falhas irão medir forças com tudo aquilo que fazes bem, muito bem. E, de certeza, que as memórias do Pedro irão ser sempre, sempre muito doces.
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