segunda-feira, 8 de abril de 2013

Agora sim!

Parte deste texto foi escrito a 4 de Julho de 2012, quando os receios eram outros…

Desde muito pequena que aprendi a lidar com a diferença, porque a profissão da minha mãe me fez conviver, desde cedo, com crianças portadoras das mais diversas deficiências. Isso fez-me tolerante à diferença e deu-me, parece-me, uma aptidão mais apurada para com isso lidar. Ao ponto de me acontecerem coisas estranhas, inexplicáveis mesmo, como ser acarinhada por um menino autista, o que só fazia a quem já conhecia há muito tempo, intencionalmente, sem deixar dúvida de que de mim gostava, logo na primeira vez que me viu.
Tudo isto me fazia pensar, muito antes de sequer pensar seriamente em ter filhos, que um dia a aleatoriedade destas coisas me poderia apanhar, exactamente por esta maior capacidade de estar alerta, de intervir, de reagir, de cuidar de alguém diferente. Sem que com isso o desejasse, sem que sequer questionasse a possibilidade de escolher sempre um bebé saudável, nem que com isso tivesse que prescindir do que me tivesse calhado no decurso de uma gravidez.
Como se a história se repetisse.
O que a minha mãe mais desejou foi um filho saudável e perfeito. Uma gravidez de risco e os 5 meses de repouso forçado trouxeram-lhe a angústia de que assim poderia não ser. Angústia maior por ter conhecimento directo de situações complicadas que começaram da mesma forma, mas uma capacidade maior, pela sua experiência profissional, de reconhecer problemas, de agir, de cuidar, de amar um filho na sua diferença. Foi só um susto, mas que lhe deixou marcas, ao ponto de não mais querer engravidar, sendo essa a razão da minha condição de filha única.
Curiosamente, quando engravidei este receio não se pôs. Nem por um momento equacionei não ter um filho perfeito.

O Pedro nasceu e é o meu filho perfeito.

Mas a primeira inquietude chegou quando percebi claramente que não reagia aos estímulos auditivos como a generalidade das crianças. Sabia que ouvia exemplarmente, havia feito o rastreio auditivo, mas não dava qualquer importância aos sons das rocas nem à música nem às actividades que com ele praticávamos e que contendiam com os sons.
A segunda chegou quando me apercebi de que o Pedro era demasiado observador, que num ambiente novo, não tirava os olhos dos objectos, ignorando em absoluto as pessoas, recusando o contacto visual, ainda que se tratasse do pai ou da mãe. 
Essa foram as primeiras razões da minha visita a uma pediatra especialista em desenvolvimento infantil. Sem que em momento algum tivesse sofrido por antecipação a um diagnóstico qualquer. Vi algo de diferente, tinha dúvidas, quis apenas esclarecê-las. Saí da consulta tranquila, não sem que me tivesse sido dada a clara noção de que todas as crianças são diferentes e que, de facto, o Pedro não tinha apetência para estímulos sonoros e que era absorvido por tudo o que o rodeava. Entre uns focos no tecto do consultório e eu, o pai ou a médica, o Pedro preferiu os focos. Mesmo o Pedro não correspondendo à norma, o conselho que nos foi dado foi incentivar as brincadeiras que lhe davam mais prazer e se para isso as rocas tinham que ser postas em segundo plano, não havia qualquer problema.
De repente, sem que o Pedro tivesse sequer um único carrinho em casa, apercebemo-nos da sua adoração por rodas. Quando passeava na rua apontava para as rodas dos carros, quando nos apanhava distraídos, encantava-se com as rodas do seu próprio carrinho de passeio, fazendo-as rodar girar. Comprámos carros e não havia (não há) brinquedo que tire o lugar a um qualquer carro. Adora-os. Mas quando era mais pequeno gostava especialmente de ver a rotação das rodas. Mais tarde, tentando introduzir outros brinquedos, que a generalidade das crianças da sua idade gostam, como bolas ou puzzles de madeira, apercebi-me que o Pedro também nesses outros objectos procurava ver a rotação. A bola não servia para chutar com o pé nem atirar com a mão, apesar da insistência do pai, mas para girar sobre si. O incrível é que com 14/15 meses conseguia dar o jeitinho à mão para que as bolas girassem como gira a terra sobre um eixo. As peças do puzzle, porque têm uma pega, antes de servirem para o encaixe serviam para girar, voltando-as ao contrário e usando-as como se de um peão se tratasse. O fascinante é que, percebendo que a rotação era mais branda no tapete, virava o puzzle ao contrário para aproveitar a superfície lisa de madeira, para que a rotação ganhasse velocidade. E tudo o mais, carrinhos com o capot mais elevado eram postos de pernas para o ar para girar, tampas de tachos, peças de brincar na areia, colheres…

Essa obsessão fez-me questionar o pediatra à cautela, que, num primeiro momento por achar que estaria a exagerar não deu muita importância, mas que perante a habilidade extraordinária de pôr qualquer coisa a rodar, como espontaneamente o Pedro fez no consultório, se preocupou, pedindo-nos atenção.
Foi o que fizemos. Estar atentos. Sempre atentos.
Outras preocupações foram aparecendo ou foram-se mantendo, como o pouco contacto visual, o não responder, mesmo quando insistentemente o chamávamos, o conseguir identificar formas geométricas em tudo o que é lugar…
Repetimos consultas com a especialista em desenvolvimento infantil. Sempre a mesma sensação à saída, está tudo bem, mas importa manter a atenção.

Sei que a generalidade de quem me é próximo não entende a minha preocupação, pensa que tenho essa tendência desprezível de arranjar problemas onde não existem.
Não é assim que o vejo. Quero é antecipar quanto antes qualquer cenário. A minha mãe, que me entende, que agiria como eu, eu sei, perguntou-me um dia, à saída de uma das consultas: “mas, e se houvesse mesmo alguma coisa?” Respondi-lhe em lágrimas, do que não me gabo (porque não sei porque chorava), “eu quero é saber, para ser melhor, porque este é o meu melhor filho, tenho que ser a sua melhor mãe, à sua exacta medida.” 

Fomos mais uma vez à consulta. E desta vez não há nenhum “mas”. Agora sim!

17 comentários:

  1. cada vez admiro mais a forma corajosa como escreves e como mostras estar na vida! (e não tens que ter vergonha das lágrimas...)

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    1. Obrigada. Ainda agora, quando me lembro dessa pergunta da minha mãe, exactamente porque era a minha mãe a perguntar, me vêm as lágrimas aos olhos. Mas já passou, é o que importa. Beijinho

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  2. Ana,
    Sei bem o que sentes.
    Um dia falaremos sobre isso (quem sabe?).
    Fico muito, mas mesmo muito feliz por saber que não mais nenhum "mas" na vossa vida.
    Um beijo cheio de carinho*

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    1. Obrigada. E falaremos sobre isto sempre que quiseres. Um beijinho.

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  3. Tudo o que penso sobre este "não haver mas..." cabia num abraço ao meu afilhado e a vocês...Mas num abraço daquelas apertados que até doi..Em Junho dou-vos!
    E és a sua melhor mãe :)
    Quanto as lagrimas...Estranho para mim seria não as haver.

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    1. Podes-me dar o abraço em Junho mas recebi-o ontem, quando te liguei. Beijos nossos.

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  4. Tudo o que penso sobre este "não haver mas..." cabia num abraço ao meu afilhado e a vocês...Mas num abraço daquelas apertados que até doi..Em Junho dou-vos!
    E és a sua melhor mãe :)
    Quanto as lagrimas...Estranho para mim seria não as haver.

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  5. Fico feliz por não haver nenhum mas. Mas também por te ler assim, admitindo as lágrimas naturais e pela serenidade com que procuras o melhor para o Pedro. Um grande beijinho.

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  6. Obrigada. Conforta-me perceber que quem me lê percebe essa serenidade, porque muitas vezes me senti algo incompreendida por quem me é mais próximo. Um beijinho.

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  7. O Pedro tem mesmo a melhor mae!
    Um beijinho muito mas mesmo uito grande'

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    1. :) Vindo de quem vem, é um grande mas grande elogio! Beijinhos

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  8. Ana, sabes que tb me questionei várias vezes sobre o pedro. Ainda bem que não é nada. Fico muito feliz por isso. Nós somos todos diferentes. Porque haveria do pedro ser igual aos outros?
    Beijinhos grandes
    Gi

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    1. Eu sei, Gi. Tu não estás naqueles que me são próximos e que não me compreendem. ;) Aliás, contigo eu sei que posso falar sobre as minhas dúvidas ou receios sem o peso da censura. Eu sei, desde sempre. Beijinhos.

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  9. Sempre achei que fizeste o que deveria ser feito, tentaste sempre dissipar as tuas dúvidas e, nunca, em momento algum, achei que estavas a tentar problemas onde não existiam. Foste corajosa, e enfrentaste o que te assustava, movida por amor. Por um amor que querias adaptar às necessidades do Pedro, caso elas fossem diferentes. Foste forte, foste onde tinhas de ir e sempre com a convicção que buscavas o melhor. Achas que algum dia duvidei que, fosse qual fosse o veredicto, serias a melhor mãe que o Pedro poderia ter?
    E, acima de tudo, esta maravilhosa notícia (apesar de nenhumas dúvidas me restarem nos últimos meses) é uma alegria enorme e sabes bem que sinto como minha!

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    1. Eu sei, minha querida, eu sei!É por isso que te adoro como minha amiga e como tia do meu pequeno.

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  10. Sabe tão bem rir e deixar cair umas lágrimas felizes. Beijos

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